Em certo sentido a fotografia funciona como um duplo do fotografado, um singelo Kolossós em papel. Por outro lado, a sua deterioração física lembra-nos não só da transitoriedade da vida como da fragilidade e constante transformação do mundo material. Uma foto antiga, mesmo deteriorada e de baixa qualidade em sua concepção, sempre será considerada uma preciosidade ou obra de arte, pois é vista como um registro arqueológico, uma ruína que sobreviveu a uma deterioração temporal”
“Os resultados mais correntes da conduta humana, os dados arqueológicos mais vulgares, podem chamar-se artefatos, coisas feitas ou desfeitas por uma deliberada ação humana”, Gordon Childe.
“As fotos são, é claro, artefatos. Mas seu apelo reside em também parecerem, em um mundo atulhado de relíquias fotográficas, terem o status de objetos encontrados – lascas fortuitas do mundo”, Susan Sontag.
Como sempre, antes da abertura de uma exposição fotográfica, chegava cedo, e sozinho observava a montagem final. Acabava fazendo descobertas de última hora, mesmo já conhecendo cada etapa da exposição que era discutida exaustivamente com a curadora. Neste olhar solitário, as fotos adquiriam vida, contavam seus dramas, esquecendo detalhes técnicos como composição, enquadramento e iluminação, até o registro final onde tudo parecia congelado para sempre.
Brasil: Cor/Preto e Branco é um título bem original e realista. Mostra anos de andanças por este país afora. É uma defesa veemente de nosso povo, cultura e natureza. Nas imagens coloridas, o que temos de belo e sublime: animais, vegetação, patrimônio histórico, arqueológico e cultural. Nossos costumes, vida rural e o sorriso das gentes. Toda beleza sempre ameaçada pela chamada modernização destes tempos de globalização mediocrizante. Em preto e branco – na realidade um cinza que esmaece a cada momento –, os fósseis vivos. O carro de boi, a jangada de toras, a Maria Fumaça, construções em ruínas ou há muito desaparecidas, aquela velha tulha de café saída de um negativo de vidro. Fotos de grande aperto no coração.
A introdução da exposição, caracterizando a fotografia como um duplo, foi muito feliz. Tudo ficou mais claro com esta ponte para a História e Arqueologia, comparando a visão mais técnica de um arqueólogo como Gordon Childe, com a poesia da escritora Susan Sontag.
O olhar do Macaco Aranha de Cara Branca emocionava. Neste imenso Brasil que parecia infinito, só restaram as margens do Rio Cristalino para aqueles refugiados furtivamente se alimentarem de aguapés. E aquele filhote nas costas, sobreviveria? Cercada pelo desmatamento, na região amazônica de Mato Grosso, em Alta Floresta, lá fotografei um exemplar da Sobralia Margaritae, só descoberta e observada anteriormente nos topos das árvores dos igapós do Rio Urupadi no Amazonas há mais de trinta anos. Assistirá às comemorações do centenário de nascimento de Margaret Mee?
Macaco Aranha de Cara Branca, Rio Cristalino, Alta Floresta, MT. Foto T. Abritta
Para atravessar esta amargura, me agarro ao verso de Manoel de Barros, que sabiamente encerra a exposição:
A gente só chega ao fim quando o fim chega!
A ideia desta montagem não é a celebração de um fatalismo niilista. É um emocionado alerta para a preservação. Sempre podemos mudar alguma coisa. Com palavras ou imagens. Aos críticos da introdução “grega” às fotografias brasileiras, respondemos: são valores universais.
Como fotógrafo de natureza, jamais selecionaria uma imagem sem qualidade técnica para uma exposição. Mas lá estava a pequena jangada. Suporte para bela história, disse a curadora. Viajávamos num pequeno barco, para a Praia dos Carneiros em Pernambuco. O mar mudou num repente, ondas enormes sacudiam tudo. O risco era grande com o Terral (1) soprando forte. Caiu pesada cerração. Na quase escuridão da bruma, a imagem esmaecida de uma embarcação se delineava. Nos aproximamos da pequena jangada de troncos já carcomidos, vela arriada, mastro caído, um estranho jangadeiro tentando dar rumo ao ximbelo (2) com um remo de governo já quebrado, emendado com madeira apodrecida. Impassível, não respondia nossos acenos em meio a tantas dificuldades que passava.
O barqueiro benzia-se, rezava e falava apavorado:
“Esta nunca vai encalhar! É coisa do outro mundo! Afogado quando o corpo não dá na praia fica alma penada, fantasma errante que assombra os navegantes. A alma vaga pelo mar, só tendo paz na procissão silenciosa dos afogados, na noite do dia de Finados, dois de novembro!”
A chuva, o vento forte, o balanço do barco e a pesada cerração dificultavam uma fotografia. Não conseguia uma boa focalização. Bati rapidamente várias fotos com diferentes distâncias focais, protegendo a lente com o chapéu, antes que a imagem desaparecesse como por encanto.
Assombração ou não, a foto era real. Selecionei a fotografia mais nítida. Com um tratamento digital consegui penetrar na bruma, olhando a dura face do jangadeiro misterioso.
Jangadeiro, Pernambuco. Foto T. Abritta
Quando vinha para a galeria, ao cruzar a Rua dos Jangadeiros em Ipanema, pensei: poucos sabem ser este nome da rua uma homenagem aos bravos nordestinos Jacaré, Mestre Jerônimo, Tatá e Mané Preto, que partiram lá de Mucuripe, em frágil jangada, chegando ao Rio de Janeiro pra falar pros graúdos, das misérias cearenses.
“O Doutor Getúlio Vargas, quando eu topei com ele de proa, viu logo que eu fiquei nervoso. Meninos, eu algum dia pensei em falar com um Presidente da República? O Presidente ouviu tudinho e ficou tão nosso camarada que às vezes eu pensava que nem estava diante do chefe da nação.”
Mas toda ajuda federal aos jangadeiros cearenses foi roubada pelos políticos nordestinos. O valente Jacaré voltou ao Rio, mas desta vez encontrou as portas fechadas; assim como hoje, o governo preferiu fechar os olhos e ficar ao lado de seus aliados políticos corruptos.
Jacaré acabou participando de um documentário dirigido por Orson Welles. Mas, nas filmagens finais, uma forte onda tragou a jangada São Pedro, desaparecendo para sempre nos mares da Barra da Tijuca. Seu corpo jamais deu à praia. Para sempre na solidão do oceano. Quem sabe, envergonhado com os nordestinos que subiram e enricaram na política, de mãos dadas com os opressores do povo?
Esta minha mania de jangadeiro, mar e fotografia começou quando eu tinha uns vinte anos. Posso até localizar no tempo, o dia. O Presidente Juscelino tomava posse em meio a várias ameaças de golpes militares e o meu pai comentava que JK confidenciou aos amigos: “tomei posse, mas ainda não montei no cavalo. Mas o farei em breve, derrotando os golpistas!”
Naquele mesmo dia embarquei como marinheiro em um cargueiro inglês para correr mundo, descobrir algo novo. Na altura de Porto Seguro o alarme: homem ao mar! Era uma pequena embarcação, navegando com quatro homens, as ondas passando por cima, pequena mancha no mar infinito. Apavorado, mesmo marinheiro de primeira viagem, fui junto no bote de resgate. Eu era o único que falava português. Estendi a corda para o homem na proa da ruína flutuante. Ele, com tranqüilidade, perguntou:
“O motor do navio parou? Querem reboque?”
Nunca me esqueci desta ironia de humildes pescadores. Mais tarde, em Salvador, vendi o relógio, sapatos de couro e até o cordão de ouro do meu batizado. Comprei um monte de livros: Jangadeiros, de Câmara Cascudo, com belas fotografias de Marcel Gautherot e ilustrações de Percy Lau, e outras obras como Mar Morto, Trabalhadores do Mar, O Velho e o Mar e Moby Dick. Uma noite sonhava que era Guma, outra Gilliatt, às vezes o velho Samuel ou o valente Capitão Ahab. Acabei oficial da Marinha Mercante e uma espécie de Pancetti da fotografia. O tempo passando, o mar ficando para trás e a grande aventura da fotografia de natureza dominou minha vida.
A noite chegava. Como um felino acuado, enxergava na escuridão as imagens daqueles restos de jangadas de troncos de Apeíba, o Pau-de-Jangada, nas praias baianas de Imbassaí. Deitadas no banco de areia entre a barra do rio e o azul do mar, teimavam em não virar pó. Hoje são construídas de compensado naval e recheadas de isopor. E as velas latinas (3) de algodãozinho, a língua branca dos indígenas, a asa branca dos poetas? Agora coloridas com estampas: Banco do Brasil. Caixa Econômica...
No silêncio da escuridão palavras ecoavam:
Que importa a mim que a bicharada roa / Todo o meu coração depois da morte?! / Mas o agregado abstrato das saudades / Fique batendo nas perpétuas grades / Do último verso que eu fizer no mundo (4).
Mas minha obra era apenas fotografias. Duplos em papel, de frágeis, perecíveis realidades. Imagens guardadas em cristais de prata e gelatinas de corantes que degradariam com o tempo, deixando a cor dissipar. O brilho congelado de mundos em extinção.
As luzes acenderam. Despertando, sorri. Pessoas chegavam, falavam, andavam, olhavam. A conversa animada:
“Sim. Quem sabe. Os cavalos selvagens de Roraima. E os elefantes do Deserto da Namíbia?”
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Notas e Observações
(1) Vento sueste, soprando da terra para o mar.
(2) Pequena jangada que não inspira muita confiança. Jangada velha, imprestável.
(3) Única vela, de forma triangular, de uma embarcação.
(4) Versos da poesia Budismo Moderno de Augusto dos Anjos.